Blog do Centro de Formação da Vila

Literatura e valores civilizatórios afro-brasileiros: uma convocação à práxis antirracista

Escrito por Centro de Formação da Vila | 19 de Novembro de 2025

A partir das proposições teóricas da intelectual e rainha das Mercês no Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, Leda Maria Martins (1997), apreendemos o corpo negro como um lugar de memória e de conhecimento e, desse modo, constatamos que embora os nossos ancestrais africanos, forçosamente trazidos ao Brasil por meio do processo de escravização, tenham visto os seus corpos e corpus “ocupados pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se apossou como senhor, nele grafando seus sistemas linguísticos, filosóficos, religiosos e culturais” (MARTINS, 2021, p.30). 

Foi também nesses corpos e por meio das expressões deles em performances e rituais que uma plêiade de saberes foi transladada, transcriada, traduzida e atualizada no novo território (de modo análogo, podemos considerar a força de resistência, recriação e cultivo das cosmopercepções dos povos indígenas, a despeito da invasão, do saque e da devastação).

O arquivo escrito que compõe a literatura negro-brasileira (Cuti, 2010), desde os seus precursores, Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis, atuantes no século XIX, dá a ver, nessa esteira, múltiplas dicções que, ancoradas em epistemologias africanas e negro-diaspóricas, perfazem uma contundente crítica ao desígnio de Brasil e, por contiguidade, ao cânone literário nacional, que corroborou o excludente projeto de nacionalidade. 

Alargando os contornos desse arquivo, que cintila de forma subalternizada e aprisionada em recepções racistas da crítica hegemônica, nos deparamos, ainda, com uma série de textualidades assentadas na oralidade e praticamente ausentes das considerações acerca da literatura. 

Não deveria surpreender a afirmação de que estamos no âmbito da literatura quando nos propomos a ouvir-falar, de corpo inteiro, a ladainha que ritualiza a abertura da roda na capoeira angola, quando vibramos no xirê ao som das cantigas do candomblé e dos pontos da umbanda, quando damos as mãos para entoar uma ciranda, quando somos ritmo na pisada do coco ou terra na espiral de um toré, quando rezamos aos ancestrais na louvação de uma congada, quando nos vemos preenchidos pela força vital da enunciação de um provérbio, quando vislumbramos caminhos pela narração de um itan, quando silenciamos para viver o oriki, resguardar um adura, quando somos festas nas palmas de um partido alto. 

Tanto como escritor, quanto como teórico e crítico literário, Edimilson de Almeida Pereira esteve atento a essa produção e sobre ela, desde a década de 80, erigiu um significativo projeto intelectual e artístico. Em seu livro A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica no Brasil (2023, p.46), nomeia como “literatura silenciosa” esta que é “tecida a partir dos fios da vocalização”, dando a ver poéticas da voz (mesmo quando presentes no código escrito). 

Esquivando-se da lógica dicotômica ocidental que opõe oralidade e escrita, o trabalho de Pereira situa esse corpus numa encruzilhada, em que podemos constatar os entrelaçamentos de heranças poéticas do arquivo branco-europeu a formas e entendimentos africanos acerca do literário. O aspecto “silencioso” atribuído ao corpus refere-se ao modo como ele é, em alguma medida, uma presença negligenciada pelos estudos dominantes do campo literário nacional. 

Ao nos debruçarmos sobre as literaturas e oralituras negras, portanto, fazemos vibrar o vínculo umbilical do Brasil com várias paisagens do continente africano, de modo que, disruptivamente, desafiamos as interdições e rasuras coloniais. 

Apreender os horizontes de significação dessas diversas textualidades, sem aprisioná-las ou reduzi-las, tem sido uma empreitada que exige, tanto da crítica literária quanto dos educadores e educadores implicados na mobilização das literaturas de autoria negra, inventividade para preencher os vazios e lacunas que o racismo estrutural produz, bem como para criar categorias crítico-análiticas e metodologias de ensino que deem conta das singularidades dos projetos estéticos. 

Em face aos movimentos históricos de dispersão e estilhaçamento das subjetividades dos sujeitos negros subalternizados no globo, tais textualidades são enunciados éticos e estético-políticos que não apenas recuperam experiências e reminiscências negras do passado, como também resguardam em si, na forma literária, o potencial de reorientação de vidas dispersas e, quiçá, de refazimento de comunidades. 

Em muitos casos, o caráter “literário” de tais produções é questionado. Isso se deve, dentre outras coisas, aos modos como as literaturas e oralituras negro-diaspóricas (MARTINS, 1997), em termos gerais, operam um significativo desvio em relação ao logocentrismo que fundamenta as formas de produção de saber no Ocidente. Nesse sentido, não é suficiente a inserção de tais obras em nossos currículos, é imperativo que adquiramos o repertório necessário para a recepção desses textos, que o coloquemos em relação aos cânones estabelecidos, mas, sobretudo, que aprendamos a reconhecer os índices de africanidade que os configuram. 

No âmbito do curso Literatura e valores civilizatórios afro-brasileiros: reflexões práticas recorremos ao legado deixado pela intelectual e educadora feminista e negra Azoilda Trindade para subisidiar nossas práxis de estudo e ensino de literatura. 

Como parte de sua atuação como coordenadora pedagógica do projeto A cor da cultura, desenvolvido pelo Ministério da Educação com significativas parcerias, Azoilda Trindade sistematizou os “valores civilizatórios afro-brasileiros”, indicados a partir das categorias da oralidade, memória, circularidade, religiosidade, energia vital (axé), musicalidade, ludicidade, ancestralidade, cooperativismo/comunitarismo e corporeidade. 

Convocamos vocês ao reconhecimento da experiência com tais valores fundantes do território Brasil e à criação de percursos de leitura de obras literárias de autoria negra que os tenham como guias.  

Ao afirmarmos a presença e relevância dos sujeitos e saberes negros no Brasil, reagimos ao epistemicídio negro e, em gesto de corresponsabilização ética, reforçamos o coro pela efetivação da Lei nº 11.645/08, que torna obrigatório na educação básica brasileira o ensino das histórias e literaturas africanas, afro-brasileiras e indígenas. 

Nessa direção, o itinerário do curso Literatura e valores civilizatórios afro-brasileiros: reflexões práticas pretende dar a ver a recalcada - seja pela ideologia nacionalista, seja pelo mito da democracia racial - dimensão pluriepistêmica do território Brasil e abrir campo para a imaginação radical de alternas possibilidades de ensino-aprendizagem e de formação de comunidades. 

 

Fabiana Carneiro da Silva é neta de Amada e de Quitéria, filha de Lourdes, mãe de Imani e de Yeté. 

Tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. 

Atualmente é Pesquisadora de Pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Doutora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba e no Programa de Pós-Graduação em Letras dessa mesma instituição. Coordena o grupo de pesquisa (Cnpq) Auê: artes da grafia. 

No campo da escrita literária e da performance, realiza uma investigação sensível e profunda de pertencimentos e genealogias, experimentando formas, transcriando o ritmo, a corporeidade e a experiência de se estar em entre-lugares. Desenvolve pesquisa sobre a produção artística negra e indígena, dedicando-se à análise dessas poéticas e à formulação de práticas de ensino e processos criativos a partir delas. 

É autora do livro de crítica literária Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor (EDUFBA,2019), do livro de poemas Casa Cheia (Paralelo 13s, 2023), organizadora do livro Sonhos com e para Stella (Segundo Selo, 2023) e editora dos livros Escola Viva Buraco D'água (Capanga de Aruanda, 2024) e Iê, o grito da capoeira-menina (Capanga de Aruanda, 2025).