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O direito de sonhar: a imaginação humana e a inteligência artificial

Escrito por Centro de Formação da Vila | 22 de Outubro de 2025

 

Um dos assuntos recorrentes em diversos lugares – especialmente na sala dos professores – é o fantasma da insônia. A dificuldade de manter uma rotina adequada de descanso parece ser generalizada. A cena, para muitos, repete-se. Em vão, a mente insone tenta prolongar o sono, até desistir. Depois de tatear a mesa de cabeceira, o celular revela: 3h da manhã. E as pessoas insistem no erro, em busca de respostas. Diversos sites falam sobre a higiene do sono. Poucas luzes. Exercícios físicos. Detox de telas a partir das 20h. Ou seria das 21h? As receitas para uma boa noite de sono variam, mas parece que todas têm em comum o apelo à distância dos aparelhos luminosos que invadem nossas mentes e nos tiram o direito a um descanso genuíno.

Sem sono, como sonhar? Essa é uma das questões que norteiam as reflexões de Sidarta Ribeiro, que, em sua obra, discute como nossas insônias privadas ecoam um vazio coletivo. Sem o acesso a um mundo simbólico por meio de uma noite bem dormida, perdemos um encontro importante com parte do nosso mundo interior. Não bastasse o cansaço cotidiano, ainda nos roubam o espaço onde somos autorizados a sermos levados pela imaginação e pela criatividade. O que nos resta é essa desesperança exaustiva.

Ainda no ambiente escolar, esse tema desdobra-se em uma outra questão essencial. A apatia e a falta de engajamento dos jovens parecem indicar que eles também têm tido dificuldades de sonhar. Afinal, movimentamo-nos quando projetamos um caminho pela frente. Caminhamos porque acreditamos existir um chão seguro que sustentará nosso peso e nos permitirá avançar. Quando nossos estudantes caminham, para onde estão indo? Se deixam de caminhar, o que os paralisa? Em meio a suas próprias insônias, essas questões também têm invadido os pensamentos dos educadores.

Para buscar elaborar um chão para pisar, um esboço de resposta para essas perguntas, a sala de aula tornou-se um campo de experimentação. Em um curso de Língua Inglesa da 1ª série do Ensino Médio, os estudantes se debruçaram sobre uma referência essencial para pensarmos sobre o ato de sonhar: o famoso discurso de Martin Luther King de 1963, no qual ele fala sobre o sonho de igualdade racial nos Estados Unidos. Refletir sobre a década de 1960 é um terreno fértil para entendermos a potência de uma juventude esperançosa e engajada. Ao longo desses estudos, discutiu-se a força mobilizadora dos sonhos coletivos que levaram milhares ao Lincoln Memorial em 63. Sonhos que nos moveram em direção a um horizonte mais justo e igualitário.

Depois, a questão foi colocada para os estudantes: que sonhos estamos sonhando atualmente? Ou melhor, quais pesadelos nos têm assolado? Coube a eles, por meio de um processo de pesquisa e planejamento, elaborar uma dissertação oral discutindo o que enxergamos ao vislumbrar o futuro, e o que gostaríamos de enxergar. Entre as reflexões apresentadas, destacou-se um protagonista familiar, aquele mesmo que habita o cerne de algumas de nossas insônias coletivas: a tecnologia – em especial, a Inteligência Artificial generativa. 

Dando forma à figura inquietante dos chatbots por meio de suas vozes, os estudantes dissertaram para profissionais da escola, revelando um olhar de fascínio e apreensão sobre como a IA vem impactando diferentes áreas da vida social, cultural, política e profissional. Os relatos revelaram tanto o entusiasmo quanto as preocupações que esse tema desperta.

Durante as apresentações, alguns estudantes abordaram não apenas temores em relação ao futuro, mas também angústias relacionadas ao presente. As discussões sobre o efeito cognitivo do uso massivo de recursos de IA levantaram reflexões sobre o desenvolvimento da capacidade crítica e da criatividade humana. Enquanto uns se debruçaram sobre reflexões filosóficas a respeito da natureza do pensamento humano e da linguagem das máquinas, outros buscaram, no passado, o próprio sentido das tarefas que, agora, são muitas vezes delegadas a chatbots

Resgatando um projeto canônico do currículo de Língua Portuguesa e Literatura do 6º ano, uma estudante refletiu sobre como, naquele percurso, encarou as nuances de discussões sobre a moral em fábulas e penou com atividades sobre recursos coesivos. Ainda assim, ela pontuou o prazer inestimável de, depois de um árduo processo de diversas reflexões, sentir que havia aprendido algo. Quatro anos depois, ela se questiona sobre como os alunos do 6º ano de 2025 estariam realizando as mesmas tarefas. Diz temer por aqueles que, em vez de se confrontarem com o exercício de descoberta de si e do mundo que é a escrita, buscarão o conforto de uma IA que produzirá algo no lugar deles. Em uma belíssima fala, a estudante sintetiza uma preocupação que já importa aos educadores há alguns anos: a perda de aprendizagens essenciais, mediante o uso sem criticidade de chatbots.

Outra estudante também ponderou sobre os impactos da IA sobre crianças e adolescentes, mas não somente de um ponto de vista do processo de construção do conhecimento. Mais uma vez, o passado nos ajuda a iluminar o presente: ela refletiu sobre como a limitação e o controle parental foram essenciais para seu próprio desenvolvimento, ainda que tenha se incomodado com isso na época em que era mais nova. Em seu discurso, ela apontou que o excesso de tempo de tela já atinge milhões de jovens, levando a problemas físicos e mentais preocupantes. Lembrou, também, que a responsabilidade não pode ser atribuída somente às crianças, mas precisa incluir a família, a escola e as grandes chamadas Big5, as cinco maiores corporações que detém o monopólio sobre a maior parte dos recursos digitais dos quais dispomos. Nesse sentido, é fundamental promover o diálogo entre família e escola, exigir regulamentação pública eficiente, dentre outras ações.

A IA generativa também apareceu como possível ameaça ao fazer artístico e à criatividade humana. A estudante H. abordou o universo das animações, chamando a atenção para os profissionais que têm perdido espaço diante da automação. Muitas empresas já substituem equipes inteiras por soluções de IA, o que levanta o debate sobre a precarização do trabalho criativo. Ela destacou ainda o risco de apropriação indevida de obras — a chamada stolen art —, já que muitas produções em IA utilizam estilos e criações protegidas por direitos autorais sem o devido reconhecimento. Já a estudante J. discutiu sobre as imagens geradas por IA e a substituição de artistas por sistemas de IA, citando a greve dos roteiristas de Hollywood. Em seus discursos, ambas as alunas tocaram em questões antigas e novas: o que é arte? Qual a função do fazer artístico para a manutenção da nossa humanidade? Como valorizar o sentido profundo da criação artística em um mundo que prioriza a produtividade e eficiência?

Por fim, as questões ambientais também foram levantadas como um eixo importante dessa discussão. K. afirmou que a IA não é abstrata: ela consome eletricidade em larga escala, gera lixo eletrônico, utiliza água doce e aumenta as emissões de carbono. Ela fez reflexões sobre o impacto ambiental desse setor que cresce de forma acelerada e insustentável, exigindo pesquisa, inovação e políticas que busquem equidade e sustentabilidade.

Diante de todas essas perspectivas, é fundamental o resgate da centralidade do ser humano como proposto pelos documentos da Unesco. Algumas características humanas — imaginar, sentir, criar sentido, estabelecer vínculos, criar histórias — não podem ser substituídas por máquinas. A tecnologia digital precisa oferecer recursos para apoiar, ampliar e acelerar processos e nunca deveria sobrepor aquilo que nos constitui como humanos. A humanidade não pode ser substituída pela IA. Todos os relatos dos estudantes afirmam que precisamos cultivar a inteligência humana em sua plenitude — ética, estética, crítica, afetiva.

E a quem cabe esse cultivo? Nas ações de educação digital e midiática da Vila, temos pensado junto com nossa comunidade sobre como esse território é de responsabilidade compartilhada entre pelo menos três diferentes instâncias: nós, aqui na escola, o poder público e também as grandes corporações de tecnologia. E o que compete a cada uma delas?

Ao poder público e aos governos, cabe regular e regulamentar o modo como as plataformas de IA usam ou tomam nossos dados para gerar conteúdo colocando limites sobre como essas tecnologias funcionam e produzem conteúdo em nosso país. Há recursos de IA que não são adequados, por exemplo, para crianças e adolescentes, mas que têm classificação indicativa livre.

Já para a escola cabe o trabalho de incorporar o uso e a reflexão sobre o funcionamento dessas tecnologias de modo adequado à cada faixa etária e ciclo em toda a educação básica. Será que todos nós sabemos como funcionam as inteligências artificiais? O que é preciso conhecer sobre sua caixa preta para compreender o que está por trás do modo como um prompt gera um conteúdo como um texto, imagem ou som? 

Entendemos, assim, que é preciso fazer, no currículo de educação digital e midiática de toda a escola, um movimento de aproximação e apropriação gradual desse tema desde a infância até a juventude, de modo que os estudantes se apropriem do tema e tenham elementos para usar esses recursos de modo ético, autoral, criativo e crítico. Todas estas ações precisam compor um currículo que envolve não somente o conhecimento instrumental, mas também o impacto das experiências que vivemos mediadas pelos dispositivos digitais e artefatos computacionais como a IA nas aprendizagens da escola e na nossa vida em sociedade de maneira ampla.

1. Chamamos de Big5, Big Techs ou pelo acrônimo GAFAM as cinco maiores corporações de tecnologia que detêm o monopólio sobre os recursos digitais que usamos: Google, Amazon, Facebook ou Meta, Apple e Microsoft.

2. UNESCO. Marco referencial de competências em IA para estudantes. Paris: UNESCO; Brasília: UNESCO Brasília, 2025. 75 p. ISBN 978-65-86603-48-4. Disponível sob licença CC BY-SA 3.0 IGO. Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000394281 . Acesso em 15 out. 2025.

 

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