
Ortografia além da regra: Transformando o ensino em oportunidade de reflexão e construção de autonomia
A ortografia é frequentemente vista como um desafio de memória, um conjunto de regras arbitrárias que os estudantes precisam decorar para não “errar”. Mas e se considerássemos que aprender ortografia pode ser muito mais do que isso? Que pode ser uma oportunidade para a reflexão, a autonomia e a compreensão profunda da nossa língua?
Na escola, a ortografia é uma convenção social fundamental para a comunicação, pois unifica a forma de grafar as palavras e facilita a compreensão da língua escrita. Embora seja essencial, muitas vezes, as instituições ainda se preocupam em cobrar a escrita correta sem oferecer oportunidades suficientes para a reflexão sobre por que as palavras são grafadas de determinada forma, por que surgem dúvidas e quais conhecimentos e estratégias podem apoiar a tomada de decisão diante delas. É preciso superar essa abordagem que gera angústia e autocensura em nossos estudantes.
Desvendando a Norma Ortográfica: Regularidades e Irregularidades
O primeiro passo para um ensino mais eficaz é compreender que a norma ortográfica da língua portuguesa não é um bloco homogêneo. Há uma série de fatores que explicam as relações entre sons e letras. O pesquisador Artur Gomes de Morais (UFPE), um dos autores cuja pesquisa embasa as nossas práticas, organiza esses fatores em dois grandes grupos: os que representam regularidades e os que constituem irregularidades.
Regularidades: São correspondências entre letra e som que podem ser incorporadas pela compreensão, e não apenas pela memorização. Isso inclui regularidades diretas, conhecidas como pares mínimos (como P/B, T/D, F/V); contextuais (em que o contexto na palavra define a letra, como R ou RR, G ou GU, C ou QU); e morfológico-gramaticais, quando a compreensão de regras nos orienta na escrita (como saber que adjetivos que indicam o lugar de origem se escrevem com ESA, enquanto substantivos derivados se escrevem com EZA). Ao internalizar essas regras, o estudante adquire segurança para escrever mesmo palavras que nunca tenha visto antes.
Irregularidades: Nesses casos, não há regra que auxilie o estudante. Para essas palavras, é necessário consultar o dicionário e memorizar. A exposição frequente à escrita impressa (livros, jornais, revistas) e o uso de listas de palavras constituem recursos importantes para a fixação. Mesmo adultos letrados podem apresentar dúvidas quanto a palavras irregulares ou de uso pouco frequente.
Diante desse panorama, é necessário analisar e compreender a forma como o estudante participa ativamente no processo de aprendizagem da ortografia e também é preciso buscar formas possíveis para a mediação desse processo.
O Papel Ativo do Estudante e a Mediação do Professor
Não basta simplesmente “mandar a criança escrever para aprender sozinha”. A aprendizagem da escrita se dá, de fato, escrevendo, mas isso exige condições didáticas específicas e a mediação do professor. Ao escrever, os estudantes colocam em jogo suas hipóteses sobre o sistema de escrita, tomam decisões sobre quais letras utilizar, em que ordem e quantidade, e refletem sobre essas escolhas.
A revisão textual é uma etapa essencial desse processo. Ela deve ocorrer de maneira colaborativa, em que os estudantes identifiquem problemas em seus textos e busquem soluções com o apoio do professor. A correção não deve ser compreendida como uma “caneta vermelha” que mina a autoconfiança, mas como uma técnica didática que favorece a autonomia emocional e cognitiva. O professor deve intervir apenas no que o estudante tem condições de aprender, atuando em sua Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).
Contexto e Significado: A Chave para uma Escrita Autônoma
Para que o ensino da ortografia seja significativo, precisa estar inserido em contextos comunicativos reais e com propósitos claros e compartilhados. Atividades de escrita que vão além de listas de palavras isoladas — como a produção de contos, regras de jogos ou campanhas de conscientização — exigem que o estudante reflita sobre a linguagem, a coerência, a coesão e as estratégias discursivas. Quanto mais oportunidades de escrever textos, maiores as possibilidades de desenvolver o conhecimento ortográfico.
A leitura também é uma grande aliada da escrita ortográfica, pois possibilita que o estudante se torne o primeiro revisor de seus textos. É fundamental oferecer diversos recursos de consulta — dicionários, listas de palavras, o próprio professor ou colegas —, fortalecendo a prática de buscar informações para tomar decisões.
Um ensino sistemático da ortografia, que promova a reflexão sobre o sistema de escrita e a autorregulação, forma escritores autônomos e críticos. Nesse sentido, a escrita deixa de ser apenas a memorização de regras e passa a constituir um processo complexo de construção de significados e organização do pensamento.
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